Análise 2: O rebelde, de
Inglês de Souza
O conto O Rebelde, do livro
Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa, publicado em 1893, no Rio de Janeiro,
traz em sua composição nove histórias, que na introdução da terceira edição de Contos
Amazônicos, podem ser consideradas quase como crônicas de costumes, ou um
documento social construído a partir da observação de aspectos da região
amazônica.
De maneira geral a narrativa
apresenta a história do personagem Luís, ainda criança; mostra a amizade entre
Luís, Júlia e Paulo da Rocha, um homem desprezado por toda a população de Vila
Bela, pelo fato de ter participado da revolta de 1817 em Pernambuco. O assunto
que atravessa toda a narrativa é a Cabanagem, fato que gera um clima tenso na região,
bem como um sentimento de medo nos moradores pela ameaça de invasão dos
cabanos. A situação se complica quando a ameaça se concretiza, os cabanos
invadem Vila Bela e matam o juiz de paz Guilherme da Silveira. Luís e sua mãe
Mariquinhas são salvos por Rocha e fogem juntamente com o padre João e Júlia
para o sítio de Andresa.
O texto segue contando as várias
situações vivenciadas pelos personagens no sítio. O personagem de Paulo da
Rocha mostra-se ao longo da narrativa um grande amigo e protetor dos refugiados.
Como último problema, Paulo tem sua filha capturada pelos revoltosos, que
propõem uma troca da jovem pelo filho do juiz, e mais uma vez Luís é salvo,
pois Paulo não faz a troca. O conto termina com Luís já adulto reencontrando
Paulo que havia sido preso como um dos revoltosos, Luís consegue a liberdade de
seu amigo, mas Paulo morre logo em seguida.
Tema central
Em O Rebelde o tema central, o
problema que impulsiona a narrativa, é a Cabanagem, assunto que envolve os
personagens e direciona toda a narrativa. Neste sentido, são apresentados por
meio das vozes do narrador e dos personagens vários posicionamentos e visões
sobre este movimento. Estas vozes trazem versões sobre a situação social, sobre
os motivos da revolta, além do posicionamento da igreja, do português, do
estado, do homem marginalizado e desfavorecido, com relação às ações praticadas
durante a revolta.
É por meio dessas vozes presentes
no texto que se fará a leitura do conto, atentando para a organização da
narrativa, dos discursos que se entrecruzam e se contrapõe como portugueses
versus brasileiros; brancos versus tapuios; favorecidos versus desfavorecidos;
estado versus revoltosos.
O primeiro aspecto que merece
atenção é o próprio título do conto, pois quando lemos esse título nos perguntamos:
Quem é o rebelde? Por que é rebelde? Essas perguntas são respondidas ao longo
do texto através do comportamento e atitudes dos personagens.
Rebelde
A primeira resposta para essas
perguntas é que Paulo da Rocha é o rebelde, pois participou da revolta de
Pernambuco e, é visto pela sociedade de Vila Bela como um velho rebelde “Paulo
da Rocha era pernambucano e fora um dos rebeldes de 1817, um soldado fiel do
capitão Domingos José Martins, o espírito-santense.” Depois é possível também
entender que o narrador, o personagem de Luís, é o rebelde, pois o garoto
mostra-se possuidor de um espírito rebelde ao se interessar por tudo que é
desprezado, incluindo a amizade dedicada ao homem marginalizado pela população
de Vila, Paulo, como se verifica no trecho abaixo:
Desde a mais tenra infância, vivi
sempre em contradição de sentimentos e de idéias com os que me cercavam:
gostava do que os outros não queriam, e tal era a predisposição malsã do meu
espírito rebelde e refratário a toda a disciplina que o melhor título de um
homem ou de um animal à minha afeição era ser desprezado por todos.
Os dois amigos, Luís e Paulo, têm
em comum um espírito rebelde, essa é a grande marca dos personagens. No entanto
o personagem de grande destaque no conto é Paulo da Rocha, que aparece como uma
voz de experiência (ele é um homem velho); ele representa o conhecimento (tinha
o hábito de ler) e a rebeldia (participou da revolta em Pernambuco e apóia de
certa forma a luta dos cabanos); é também o velho do outro mundo (comparado ao murucututu,
figura lendária das cantigas usadas pelas mães de Vila para acalentar seus
filhos) e um presságio funesto para o pai de Luís (quando aparece na porta da
casa antes da invasão dos cabanos). Mas acima de tudo, Paulo da Rocha é um
grande herói da narrativa, apresentado como um homem honesto, simples, que tem
consciência de sua situação social e que é capaz de renunciar muitas coisas
para salvar um grupo de amigos. Essa idéia será retomada mais tarde, quando
será falado mais especificamente do personagem Paulo da Rocha.
Cabanagem
Esta narrativa traz duas visões
sobre o movimento cabano: uma que condena a revolta, visão dos brancos,
portugueses, pessoas que detinham o poder; e outra que mostra ser justa a luta
dos cabanos, visão defendida pelos grupos excluídos, diferentemente do conto A
Quadrilha de Jacó Patacho, que traz um recorte da invasão de um grupo de
revoltosos à casa da família do português Félix Salvaterra. Neste conto é
ressaltado o papel de vítima dos portugueses, quando qualifica a família de
Félix Salvaterra como “honrada” e possuidora de uma “consciência honesta”, e o
papel de vilão dos cabanos, quando descreve os revoltosos como um aspecto feio
e repugnante, “figura baixa e beixigosa”, “nariz roído de bexigas”, “boca
imunda e servil”.
Nesta narrativa é mostrado apenas
um lado da revolta, a violência praticada pelos cabanos, o clima de medo e
terror instaurado na região amazônica durante este período, sem mostrar o
porquê da revolta, a situação de exclusão social e miséria vivida por uma
parcela da população paraense. O narrador conta as ações criminosas dos
revoltosos, mas não mostra a violência cometida pelos guardas do governo ao
conter a revolta. Já o conto O Rebelde, como foi dito anteriormente, nos
possibilita a visão dos dois lados envolvidos na cabanagem, dos portugueses,
brancos, da classe mais favorecida e a visão dos revoltosos e excluídos.
O texto deixa bem marcado as
posições opostas tomadas pelos brancos e os caboclos, que se personificam nas
figuras de Guilherme da Silveira e Matias Paxiúba. O primeiro assume o papel de
dominador, conquistador e civilizado enquanto o outro é relegado ao papel de
dominado, conquistado e incivilizado, ressaltando o ódio cultivado e mantido
pelas duas “raças”, vejamos um trecho:
O certo é que o branco e o
caboclo se haviam jurado um ódio eterno. Naqueles tempos de fortes paixões, em
que todos os sentimentos tinham uma possança e uma pureza extrema, ódios
arraigados e entranháveis eram comuns. Matias Paxiúba, o brasileiro, e
Guilherme da Silveira, o marinheiro, tinham-se sempre encontrado inimigos –
desde a primeira vez que se viram, parecia que todo o ódio das duas raças, a
conquistadora e a indígena, se tinha personificado naqueles dois homens, cujos
nomes eram o grito de guerra de cada um dos partidos adversos.
Vozes
No conto encontramos muitas vozes
que contam a Cabanagem, a do narrador adulto que conta sua experiência durante
a infância com a revolta; a voz de Paulo da Rocha, homem marginalizado pela
sociedade, participante da revolução de 1817 em Pernambuco; a voz de Guilherme
da Silveira, juiz de paz; a voz de João da Costa do Amaral, padre e português;
a voz de Mariquinhas, mãe de Luís e esposa de Guilherme da Silveira (voz que
pouco aparece); a voz dos cabanos e de um dos líderes Matias Paxiúba. Essas
vozes caracterizam posicionamentos políticos, representam pontos de vistas de
classes sociais e marcam as relações de poder entre dominados e dominadores,
compondo um painel da sociedade de meados do século XIX na Amazônia.
A voz do narrador Luís por vezes
se posiciona com uma voz que condena os revoltosos chamando-os de “corja de
bandidos”, de “fanáticos” possuidores de “uma alucinação religiosa e
patriótica”, bem como mostra as crueldades praticadas a homens, mulheres e
crianças
Os viajantes que passavam por
Vila Bela narravam a meia voz as façanhas desses fanáticos caboclos, vítimas de
uma dupla alucinação religiosa e patriótica, e o faziam com tal exagero que
infundiam terror aos mais destemidos. Diziam de homens queimados vivos, de
mulheres violadas e esfoladas e do terrível correio, suplício que inventara a
feroz imaginação de um chefe.
Consistia em amarrar solidamente aos pés e as mãos da vítima e embarcá-la assim em uma canoa que, entregue à correnteza do rio, abria água em poucos minutos. [...]
Consistia em amarrar solidamente aos pés e as mãos da vítima e embarcá-la assim em uma canoa que, entregue à correnteza do rio, abria água em poucos minutos. [...]
A voz de Luís é essa voz que traz
consigo a visão da classe em que ele está inserido, a classe favorecida e
dominadora, possuidora de bens e de cargos públicos (o pai de Luís era juiz de
paz), como aponta o próprio narrador “Meu pai representava a civilização, a
ordem, a luz, a abastança.”, que via na luta dos cabanos uma forte ameaça para
a continuação de sua dominação, o que explica o motivo dos “tapuios” serem
apontados como fanáticos.
A voz do padre João representa um
discurso que contradiz o seu próprio posicionamento dentro da sociedade, o de
ter sempre a fé, a confiança na “Providência Divina”, pelo fato de que em
alguns momentos ele declara não poder fica esperando pela providência.
[...] Não podemos ficar de braços
cruzados, à mercê da Providência [...] De que vale ser ministro do altar? Para
esses fanáticos sanguinários, a minha antiga nacionalidade é crime que tudo faz
esquecer!
e em outros ele apenas se entrega
a essa possibilidade, vejamos a fala do personagem, ” – Entreguemo-nos à Divina
Providência, o melhor amparo dos que padecem.” Padre João representa a voz da
Igreja, de uma classe favorecida na sua condição de representante de Deus, da
moral e da ordem, além de representar também o português, o branco e o
colonizador. Essa voz aparece na narrativa condenando as ações dos revoltosos,
“fanáticos sanguinários”, é uma voz marcada pelo medo da invasão a Vila, pelo
medo do encontro com os revoltosos e que se esconde num discurso de preocupação
com o povo, vejamos um trecho:
[...] — Oh! – continuou ele
(padre João), depois de uma pausa, e como receando que fossem mal interpretadas
as suas palavras.
– Deus me é testemunha de que não temo por mim, mas por estes povos infelizes, que serão vítima da minha involuntária culpa.
– Deus me é testemunha de que não temo por mim, mas por estes povos infelizes, que serão vítima da minha involuntária culpa.
A voz de Mariquinhas soma-se à
voz de Luís e a do padre João, pois é a voz de uma mulher ligada à classe
social mais favorecida, voz de quem ocupa um papel de destaque, esposa do juiz
de paz da região. É importante observar que essa personagem pouco fala ao longo
de toda a narrativa, mas num momento de desespero desabafa e expõe sua visão
obre a revolta, condenando os cabanos, apontando a luta como uma mera vontade
de roubar e matar “— Isso dizem os cabanos para esconder os seus torpes
motivos. O que eles querem é matar e roubar.[...]”.
Mariquinhas é uma personagem que
traz consigo o preconceito de cor e de posicionamento social, pois mesmo depois
de Paulo da Rocha lhe ter salvo, a
personagem não consegue confiar no mulato “[...] Não posso explicar uma tal desconfiança, mas minha mãe, principalmente, não se soubera despir de antigos preconceitos, nem podia olhar com segurança para o mulato.” Como podemos verificar esta personagem esta arraigada em suas origens e em todos os preconceitos de sua classe, fato este notável na sua relação de desconfiança com Paulo, um homem simples, pobre e participante da revolta de Pernambuco.
personagem não consegue confiar no mulato “[...] Não posso explicar uma tal desconfiança, mas minha mãe, principalmente, não se soubera despir de antigos preconceitos, nem podia olhar com segurança para o mulato.” Como podemos verificar esta personagem esta arraigada em suas origens e em todos os preconceitos de sua classe, fato este notável na sua relação de desconfiança com Paulo, um homem simples, pobre e participante da revolta de Pernambuco.
O texto também revela a crueldade
dos guardas, que fazem um cerco ao grupo de Matias Paxiúba, matam homens,
mulheres e crianças. Os guardas também acham natural todas as brutalidades
cometidas contra os revoltosos e só lamentam ter conseguido um único
prisioneiro. Como é percebido na fala do tenente-coronel Miranda:
Atirando-se à água. Muitos deles
foram mortos a tiro, outros se afogaram, alguns foram comidos de jacarés.
Quando descobri a fuga mandei ativar o fogo. Ardeu das palhoças. [...] – Os que
não se atiraram à água foram poucos. Mulheres e crianças morreram queimadas.
Era natural. Nós não lhes podíamos acudir. O que é lamentável é que só se
fizesse um prisioneiro, mas esse era de muita importância.
Todas essas vozes convergem para
um único ponto: mostrar a situação instável durante a revolta Cabanagem a
partir do olhar da classe social mais abastada, dos portugueses, dos brancos,
em outras palavras, de como uma classe social que detinha o poder político e
econômico da região enxergou a revolta.
Narrador
A situação dos revoltos é contada
pela voz do narrador e de outros personagens, como foi verificado nas
observações acima, mas há ainda um acréscimo, pois em um certo momento da
narrativa o próprio cabano ganha voz e expõe a sua visão sobre os fatos que o
levaram a começar a luta, fato que surge como um diferencial dentro do texto
inglesiano, “[...] — Branco mata e rouba o tapuio aos bocadinhos. Tapuio mata o
branco de uma vez, porque o branco é maçom e furta o que o tapuio ganha.”.
Nesta fala um dos “tapuios” tenta mostrar que o “branco” não é melhor que os
revoltosos, visto que ambos matam, no entanto a diferença está na forma, o
“branco” mata aos poucos por meio da exploração e o “tapuio” mata “de uma vez”,
logo ambos estão cometendo os mesmos crimes só que de formas diferentes.
Esta fala surge dentro de todo o
contexto da narrativa como uma força poderosa, capaz de apontar toda a situação
de luta do “tapuio” em vencer a exploração que há anos lhe tinha sido imposta
pelo “branco”, e por toda uma sociedade comandada pelos conquistadores
portugueses, apesar da aparente liberdade alcançada pelo brasileiro com a
independência do país.
Um dos lideres da revolta Matias
Paxiúba também ganha voz no texto, personagem que é temido pelos portugueses,
adjetivado pelo narrador como “feroz”, “cruel” e “desapiedado”, possuidor de
uma “voz de trovão”, que aparece como uma figura quase mítica dentro da
narrativa, traz a voz da vingança, de toda a revolta que impulsiona um desejo
de acerto de contas entre o colonizado e o colonizador “— O filho dessa gente
maldita – disse o tapuio em tom resoluto, – o filho de Guilherme da Silveira
não pode viver. Tens que entregá-lo à vingança dos teus patrícios”.
Dentro dessa fala há o conflito
racial e social, traz-se à cena a relação conquistador versus conquistado, o
personagem de Guilherme da Silveira, juiz de paz, português, representado a
essa altura pelo filho e único herdeiro, versus o de Paxiúba, o brasileiro.
Esses personagens caracterizam bem essa luta entre o conquistador,
representando a “civilização”, a “ordem”, a “luz”, a “abastança”, e o
conquistado representando a “ignorância”, a “superstição”, o “fanatismo”.
Outro momento em que a voz dos
revoltosos se faz presente no texto, está justamente no momento da invasão de
Vila Bela, em que ecoa o grito de guerra da
Cabanagem “— Mata marinheiro, mata, mata!”, mostrando a força e o desejo de vingança dos revoltosos. Este grito quando é ouvido pelos portugueses gera pânico e desespero, é também um dos barulhos que acorda Luís, ainda menino, em sua casa durante a invasão. É um grito que traz consigo uma ação “matar”, um desejo e ao mesmo tempo uma ordem, um imperativo “mata”, e o alvo dessa ação é o “marinheiro”, simbolizando neste contexto a figura do juiz de paz e outros portugueses representantes da injustiça, na visão dos revoltosos.
Cabanagem “— Mata marinheiro, mata, mata!”, mostrando a força e o desejo de vingança dos revoltosos. Este grito quando é ouvido pelos portugueses gera pânico e desespero, é também um dos barulhos que acorda Luís, ainda menino, em sua casa durante a invasão. É um grito que traz consigo uma ação “matar”, um desejo e ao mesmo tempo uma ordem, um imperativo “mata”, e o alvo dessa ação é o “marinheiro”, simbolizando neste contexto a figura do juiz de paz e outros portugueses representantes da injustiça, na visão dos revoltosos.
Os revoltosos apesar de terem voz
na narrativa e de exporem seus motivos em algumas falas, ainda são poucos os
personagens do lado dos “tapuios” que ganham voz no texto se comparados ao
número de personagens representantes dos brancos, portugueses, que condenam o
movimento. Isso pode ser explicado pelo fato de que o narrador, já adulto,
conta a história que vivenciou durante infância, e que foi prejudicado pela
ação dos cabanos perdendo a casa, o pai e os amigos Rocha e Júlia.
Além de todas as vozes dos
dominadores e dominados, há no texto uma voz diferenciada, a voz do personagem
Paulo da Rocha que media de certa forma as outras vozes, uma voz que analisa a
situação social do país no contexto histórico em que ele está inserido. Fala da
miséria enfrentada pelas populações inferiores, da escravidão dos índios, da
proclamação da independência, destaca o porquê da revolta dos cabanos, a
situação de marginalização e miséria dos revoltosos mostrando um conhecimento e
uma consciência política. Vejamos este momento da narrativa:
Paulo da Rocha dissertou
longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria originária das populações
inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os
inqualificáveis abusos com que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência
destes. Disse da sujeição em que jaziam os brasileiros, apesar da proclamação
da independência do país, que fora um ato puramente político, precisando de seu
complemento social. Mostrou que os portugueses continuavam a ser senhores do
Pará, dispunham do dinheiro, dos cargos públicos, da maçonaria, de todas as
fontes de influência, nem na política, nem no comércio o brasileiro nato podia
concorrer com eles. Que, enquanto durasse o predomínio despótico do
estrangeiro, o negro no sul e o tapuio no norte continuariam vítimas de todas
as prepotências, pois que eram brasileiros, e como tais condenados a sustentar
com o suor do rosto a raça dos conquistadores. [...]
Panorama
Nesta fala de Paulo recontada
pelo narrador, o personagem cria diante do leitor um panorama da sociedade brasileira,
fazendo com que sejam conhecidos os problemas vividos durante o século XIX no
Brasil. É feito uma crítica a organização do país, pois aponta a própria
proclamação de independência como um ato político, que não possuiu um
desdobramento social. Expõe a dominação ainda existente do português sobre o
brasileiro, em que o primeiro detinha os cargos públicos e de governo enquanto
que o segundo continuava como vítima da exploração do estrangeiro.
Este personagem ganha mais
profundidade, pois não defende somente o seu lado marginal, ou tenta justificar
os problemas com mais problemas, pelo contrário ele é capaz de descrever toda a
situação social e política de sua região e até mesmo do país.
O personagem Rocha também faz
algumas considerações sobre a Cabanagem, aponta o movimento paraense como uma
extensão da Revolução de 7 de abril, e se questiona porque o governo do Rio de
Janeiro, nascido de uma manifestação popular perseguia o povo do Pará . É
interessante observar que, o personagem apesar de defender a luta e a causa dos
revoltosos, apontando a situação de marginalização social,
[...] Bater os cabanos! Uns
pobres diabos que a miséria levou à rebelião! Uns pobres homens cansados de
viver sobre o despotismo duro e cruel de uma raça desapiedada! Uns desgraçados
que não sabem ler e que não tem pão… e cuja culpa é só terem sido despojados de
todos os bens e de todos os direitos [...] e quem disse ao senhor padre João
que eu, Paulo da Rocha, o desprezado de todos em Vila Bela, seria capaz de
pegar em armas contra os cabanos? [...]
também condena os crimes, as
mortes e violências praticadas contra mulheres e crianças “— Senhor padre João,
estou longe de provar os morticínios que têm feito os brasileiros por toda a
parte [...]”.
Em alguns momentos da narrativa
Rocha é visto pelo narrador como um herói, uma figura agigantada, e uma figura
quase mítica “[...] uma voz oculta me indicava um herói das antigas lendas
[...] um homem como eu sonhava nos meus devaneios infantis”.
Os raios do sol cadente,
penetrando na humilde habitação, vinham ferir em cheio o crânio seminu do
pernambucano, que, alto, ereto, agigantado e estranho, parecia outro homem, sem
rugas no rosto, sem cansaço na voz, sem a habitual tristeza na fisionomia.
O personagem de Paulo é visto na
narrativa de diversas formas, em alguns momentos ele é adjetivado como o
pernambucano, o rebelde de 1817, o velho do outro mundo, o mulato, o velho
feiticeiro, o sineiro da matriz ou estranho sineiro da Matriz, mas acima de
todas essas características que lhes são atribuídas, ele é apresentado como o
grande herói da história, capaz de ariscar a sua própria vida e a de sua filha
para salvar a vida de um amigo e manter a palavra dada a Guilherme da Silveira.
O resultado de tudo é apresentado no final do conto, ele passa muitos anos
preso na cadeia, confundido como um dos cabanos, e quando ganha a liberdade
morre sem condenar seus algozes, dono de uma grande bondade, fato que leva o
narrador a compará-lo a Jesus de Nazaré no alto da cruz.
O pernambucano parecia ter mais
de cem anos. Rugas profundas cortavam-lhe o bronzeado rosto em todos os
sentidos. O corpo era de uma magreza extrema de vida que se esvai. Só lhe
ficara o olhar, o olhar sereno e claro, e um sorriso de resignação e de
bondade, o sorriso que teve Jesus de Nazaré no alto da cruz. [...] levei-o para
minha casa, onde dois dias depois expirou nos meus braços. Voou aquela sublime
alma para o céu sem murmurar contra os seus algozes.
Paulo da Rocha juntamente com os
outros personagens trazem a voz da exclusão social, possibilitando ao leitor a
oportunidade de conhecer um outro lado da revolta, o lado dos que foram
marginalizados pelo governo, pelos portugueses, pela população detentora de
maior poder aquisitivo, bem como a situação política e social do Brasil no período
pós-independência nacional.
Cabanos
De maneira geral o conto O
Rebelde, de Inglês de Sousa, conta as ações praticadas pelos cabanos, pelos
guardas do governo e por outras pessoas envolvidas, reconfigurando no
plano ficcional fatos do mundo real. Neste sentido, é possível por meio das
vozes dos personagens e do próprio narrador conhecer os efeitos da Cabanagem na
vida da população de Vila Bela.
Através da observação das vozes
dos personagens, dominadores e dominados, buscou-se verificar o posicionamento
de reprovação e aprovação das classes sociais sobre a revolta, tendo em vista
que, essas vozes expõem ao leitor a situação política do país, a situação de
miséria da população local (os chamados tapuios), bem como a exploração da
população brasileira mantida pelo estrangeiro detentor de cargos públicos e do
próprio governo.
A narrativa expõe os dois lados
da revolta, as violências cometidas pelos cabanos e as cometidas pelo governo,
diferentemente de outros textos e documentos históricos que mostram apenas a
visão da classe dominante. Em O Rebelde é possível vê a denúncia na voz de
Paulo da Rocha e outros personagens, que a Cabanagem não foi uma revolta sem
objetivos ou motivos, pelo contrário, é exposta a situação insustentável de
miséria e exclusão social que vivia o tapuio, explicando o porquê das ações
violentas e da revolta como um todo, não se resumindo a um relato de guerra
pelo poder, mas mostra-se como um texto revelador de uma história da sociedade
da Amazônia.
por Livia Sousa da Cunha,
mestranda em Estudos Literários – UFPA
POSTADO POR SHEILA SILVA
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